Vida Além da Vida

de Clério de Souza Oliveira

 

Capítulo 6

 

Recuperação

          A escuridão imperava, parecia que na verdade o interior projetava-se para o exterior. A dor, o remorso, a vergonha estava presente. Isabela não conseguia se perdoar e aquela situação a deixava mais desconsolada. Vez por outra ouvia lamentações, xingamentos, risadas dementes. Apesar de ir adquirindo a compreensão de tudo o que ocorria, tinha a convicção que não merecia qualquer ajuda.

          Compreendia agora que aquele inferno existia mais dentro de si própria do que em volta. Percebeu com o passar dos anos que ali o que valia era o que se sentia, e seus sentimentos adquiriam forma e consistência, não era como no corpo em que o passar das horas, um choro, uma distração ou mesmo o consumo fazia com que tudo desaparecesse. Lembrava que quando ficava irritada com alguma coisa pegava o carro e ia para o centro da cidade, comprava um vestido novo ou um par de sapatos, isto era revigorante, fazia com que ela se esquecesse de tudo. Mas e agora? Agora não havia forma alguma de afastar-se dos problemas, eles estavam presentes, era como se eles próprios fossem o seu corpo.

          Arrependida do que fizera para seu filho e lembrando-se das revistas de terror, onde lia contos de vampiros, reconhecia em si própria um, mas não mais usaria tal artifício, cairia desfalecida, mas não iria vampirizar ninguém. Ao longo daquele caminho interminável, que não ia para lugar nenhum, vez ou outra encontrava umas espécies de frutas colocadas à margem deste caminho e também pequenas minas de água, mas uma água diferente, de difícil descrição.

          Após muito tempo uma voz passou a fazer-lhe companhia durante alguns momentos, ela falava em Deus, mas Isabela não queria ouvir, replicava a cada informação que lhe era trazida. Não conseguia voltar a acreditar em Deus, que Deus faria aquilo com ela, nunca fez mal a ninguém, foi boa mãe, cometeu erros, sim, mas quem não os comete. Não merecia estar nesta condição, roupas rasgadas, sentindo-se fedida. Que Deus permitiria a existência de um mundo como aquele. E a voz insistia:

          - Isabela, não é Deus que está criando ou criou este mundo, ele é criação sua e de todos que aqui estão. Você realmente não fez mal a ninguém quando estava no corpo, mas também não fez o bem. Os dons que recebemos são uma espécie de empréstimo bancário, você tem que pagá-los incluindo a correção dos valores e mais algum para indenizar o favor recebido.

          - Mas que dons são estes? Nasci pobre, o que ganhei foi com muito suor.

          - Você recebeu o dom da inteligência, o dom da visão, o dom da fala, e dom da mobilidade e vários outros que só terias consciência quando eles lhe fossem negados. Quantos vão ao mundo sem alguns deles? Graças a Deus pudestes fazer uso de cada um. Mas e a paga? Ficastes em dívida, deverias usá-los para apoiar àqueles que nasciam sem ou ficavam sem algum dom destes. Deus nos colocou como guardiãos dos nossos irmãos. Aquele que pode mais ajuda aquele que pode menos.

          - Mas ninguém me falou isto. Eu tive que me preocupar em sobreviver e alimentar a minha família, eu fui muito tempo a que podia menos.

          - E achas que não foste ajudada? Tiveste problemas, mas não lhe faltou saúde para resolvê-los. Foste beneficiada com o afastamento de inimigos por aqueles que lhe amavam, não percebestes como tudo se encaixava, como as situações mais angustiantes se dissipavam rapidamente. E como podes dizer que não sabias o que fazer? Desde pequena foste levada a buscar o que era invisível, mas ficastes presa às aparência e esquecestes o conteúdo.

          Isabela ao se recordar de cada ato de sua vida reconhecia a mão de Deus sempre a ajudá-la, e após longo período conseguiu chorar de novo, mas era um choro que limpava, que a deixava mais leve, e não conseguindo andar mais caiu de joelhos e pedia perdão a Deus, pedia que perdoasse as suas dívidas.

          Tudo se apagou, finalmente conseguia dormir, dormia um sono calmo, tranqüilo.

          Acordou no mesmo local que há anos atrás teria ido logo após a morte do seu corpo, àquele quarto que agora lhe parecia um lugar sagrado, aquela claridade que repousava, os lençóis limpos e perfumados, suas roupas tão brancas como tudo ali. Mas desta vez não procurou levantar-se, queria aproveitar aquilo o mais tempo possível. A porta se abriu e entrou a mesma senhora que antes a havia atendido.

          - Como está você?

          - Agora, melhor do que nunca. Vou poder ficar aqui?

          - Sim, o quanto você precisar.

          - Muito obrigada, nem sei como agradecer.

          - Não me agradeça. Tudo o que temos é de Deus e somente a ele podemos agradecer pela concessão de cada bem que recebemos.

          - Sim, é verdade, agora eu sei disto e espero nunca mais me esquecer.

          - Todos nós esperamos. Fique em paz, daqui a pouco lhe trarei sua refeição.

          Isabela voltou a dormir até que novamente a porta se abriu e a senhora lhe trazia uma bandeja com um prato e um copo, cheios de uma substância que tinha um aroma delicioso, mas totalmente desconhecido. Sorveu tudo, não se pode nem dizer – comeu - porque simplesmente aquele alimento preenchia seu atual corpo, parecia que fazia cada parte dele receber nova vibração. Voltou a dormir.

          Não podia precisar o tempo que havia dormido, mas era com um grande alívio que se descobria ainda naquele quarto. Suas forças tinham retornado totalmente, a fadiga tinha desaparecido, sentia agora vontade de se levantar, mais do que isso, sentia vontade de voar.

          Caminhou até a janela e admirou a paisagem, que se lembrava. Atrás de si uma voz se fez ouvir, reconheceu imediatamente, era a que havia lhe feito companhia várias vezes, e que mesmo frente a sua rudeza não desanimou em despertá-la de sua ignorância. Virou-se e viu um senhor que aos seus olhos era a pessoa mais bela do mundo.

          - E aí? Aqui é bem melhor, não?

          - Você? Muito obrigada por tudo que fez, desculpe-me a ignorância.

          - Que é isso? Não se pode conversar com a própria filha? Está me agradecendo por quê?

          - Pai? Você é meu pai?

          - Não se lembra de mim? Será que fiquei tão diferente assim?

          - Faz muito tempo. No começo eu não queria esquecer, mas com o passar dos anos não conseguia mais manter a sua imagem no pensamento. Como você me fez falta!

          - Falta? Eu? Eu estive contigo várias vezes. Eu acompanhei você até quando não mais me permitia a aproximação. Quando você trocou o amor pela humanidade pelo amor ao dinheiro, eu estava rezando por você. Nunca lhe abandonei!

          - Mil perdões pai. Eu não sei porque fiz isso. Eu devo ter ficado maluca.

          - É minha filha! Se as pessoas percebessem a doença que é a ganância, o mundo seria um paraíso.

          Isabela entregou-se às lágrimas e ao abraço do pai. Sentindo-se enfraquecida foi colocada na cama por ele e adormeceu imediatamente.

          Dias se passaram com a visita constante de seu pai, até que ela sentiu-se em condições de sair para o jardim. Experimentou novas alegrias no contato com a natureza.

          - Bem, minha filha, agora que você está forte eu preciso me afastar um pouco.

          - Não, pai! Fique comigo!

          - Eu tenho que continuar meu serviço, sou um devedor como você, não posso ficar neste deleite, tenho que fazer por onde para receber dons para uma nova vida encarnado.

          - Você quer voltar a viver num corpo? Para quê? Aqui é tão bom!

          - Como já conversamos várias vezes, nós temos que servir nossos irmãos, e este é o único caminho para a elevação, e não poderemos ser promovidos se não enfrentarmos corretamente a escola da vida. Como no colégio, não basta só estudar, tem que prestar atenção em sala-de-aula e empenhar-se para fazer uma boa prova, assim é o mundo, devemos aqui nos preparar, adquirir conhecimentos, treinar, de modo que quando retornarmos ao corpo, e ele agindo conforme a nossa condição, tenhamos capacidade de crescer e quem sabe, um dia, atingirmos tal estado que nos permita passar para uma posição acima, aonde não se precisa mais voltar à matéria mais densa, onde não tenhamos mais as dores das nossas faltas.

          - Mas você é tão bom, quase um anjo, não precisaria mais renascer.

          - Cada um é que sabe os seus erros. Ninguém está aqui á toa. Todos têm as faltas do passado. Você acha que perdi meu corpo, novo, por quê?

          - Porque você era muito bom para ficar naquela vida dura.

          - Nada disso! Tudo foi conseqüência de um passado de abusos. Meu coração não suportou o peso que trazia no espírito. E tenho muito que fazer.

          - Mas pai, se a gente renasce, esquece tudo, acaba errando nas mesmas coisas.

          - É por isso que na escuridão queimaste a parte mais pesada das suas culpas, agora você se restabelece e sendo inteligente estuda para adquirir mais conhecimento e ficar preparada para voltar à carne. Ao voltar recebes as condições propícias para trabalhar o que és, mudar suas atitudes, no entanto tens que decidir a todo o momento e enfrentar as conseqüências de cada decisão. Levas para o mundo as marcas do passado e tens que curá-las. Seres mais evoluídos que nós, no serviço Divino, auxiliam-nos para que recebamos as potencialidades necessárias para isto. Você conseguiu riquezas e o que fez dela?

          - Só prazeres e futilidades, que não pude trazer para cá.

          - Em vez de usá-la para o bem da humanidade como sua filha agora faz.

          - E eu ainda quis destruir isso. Quase matei meu filho nesta tentativa, deixei-o imobilizado numa cadeira de rodas.

          - Mas mesmo assim tudo está funcionando, a vida continuou, a obra não parou e seu filho graças à presença de antigos desafetos, transformados em verdadeiros anjos de caridade, hoje é mais produtivo sem o uso das pernas do que quando gozava de plena saúde.

          - Ele está bem?

          - Sim, está muito bem.

          - Será que vou poder ir vê-los?

          - Agora, no seu estado, seria muito prejudicial para eles. É necessário que você se prepare e quem sabe poderás prestar muito serviço por lá.

          - Seria ótimo!

          - Cabe somente a você. Agora tenho que ir, você está em boas mãos, Marta, aquela senhora que te leva alimentos cuidará de ti.

          - Eu não vou te ver mais?

          - Claro que vai! Só não poderei estar muito tempo contigo. De vez em quando eu apareço, tá legal?

          - Tá!

          Marta mostrou à Isabela tudo o que o local poderia fornecer de ensino e as possibilidades de serviço.

          Isabela entregou-se ao estudo com a esperança de um dia poder estar novamente junto com aqueles a quem amava.

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Capítulo 7