Vida Além da Vida

de Clério de Souza Oliveira

 

Capítulo 2

 

Reencontro

 

 Madrugada fria de inverno, Maternidade da Cidade, mais um choro de criança se junta ao coro já existente. Nascido sob a influência do signo ascendente de Câncer. Veio ao mundo para relacionar-se com ele por meio da emoção. Necessita amar e ser amada.

 

 A mãe, moça solteira, com seus vinte e quatro anos, mas não principiante na arte de dar a luz. Tinha um filho de dois anos, achou que desta vez, a pessoa que havia escolhido para amar, seria correspondida. Engano, só foi ficar grávida e ele desapareceu.

 

 Vivia com sua mãe, trabalhava de vendedora em uma loja de perfumes. Gostava do que fazia. Sua condição de grávida não atrapalhou, pelo contrário, parece que o instinto materno das mulheres fez com que naqueles meses a freguesia aumentasse. Sua patroa, felicíssima, já estava falando em sociedade. Mas não é só isso, ela era realmente boa no que fazia, sabia cativar, conhecia todas as fragrâncias. Quando era lançado um novo produto logo se interessava. Sua memória era excelente.

 

 Teve uma gravidez tranqüila, parecia que o bebê não queria incomodar. Soube do sexo dele aos cinco meses. Gostou de saber que estava vindo uma menina. Apesar do choro que rolou quando o amante desapareceu, apesar desta nova decepção, amava essa criança, desejava tê-la nos braços.

 

 Conselhos errados recebeu de vários lados. Até sua mãe, no início, vivia perguntando como ela iria sustentar mais um filho. Colegas até lhe entregaram cartões, endereços de clínicas que faziam aborto. Mas não pensou, nenhuma vez, nesta possibilidade.

 

 Não tinha formação religiosa, mas gostava de ler revistas esotéricas, tinha em seu quarto uma mesa lotada de pedras, porta incensos, bibelôs gnomos e ouvia mantras e músicas new age.

 

 Era leitora assídua do horóscopo no jornal. Sabia que na maioria das vezes não dava certo, mas quando dava, era exato. Já tinha feito seu mapa astral pelo computador de uma amiga e ele revelava que devia amar muito, que precisava amar muito.

 

Acreditava em Deus, sentia-o como um ser muito amado, gostava da natureza. Devido a este estado de espírito aparentava ser mais nova ainda do que era. Na entrada do cinema ainda exigiam-lhe a carteira de identidade.

 

 Sua alegria de viver não diminuiu com esta nova carga de responsabilidade, pelo contrário, se sentia mais feliz. Sua mãe, viúva há quinze anos, não compartilhava desta alegria. Desde a morte do seu marido, a quem era apegada excessivamente, se tornara amarga, reclamava de tudo e de todos. Mas isto não atrapalhava o amor que Isabela tinha por ela. Do pai lembrava a sua força, seu cuidado para com o jardim da casa, seu gosto por música clássica. Compartilhava da admiração da mãe por aquele bom homem que morreu como um passarinho. Ele, após um almoço de domingo, deitou-se no sofá da sala e ali ficou. Só foram perceber que ele havia morrido quando tentaram acordá-lo para assistir a um filme de ficção científica que estava começando na televisão. Seu coração simplesmente parou. Não deu para sentir sua morte, ele parecia que só estava dormindo, só não gostou quando o colocaram naquele caixão e o enterraram, só aí sentiu uma dor no peito e as lágrimas afloraram Mas elas parecem que descarregaram toda a dor. A lembrança do pai ainda continuava tão forte que dava para sentir a sua presença dentro de casa.

 

 Retornou para casa, agora com uma criaturinha em seus braços. O filho, Adriano, inicialmente cheio de ciúmes, logo se achava cheio de cuidados com a mãe e a irmã. Realmente, Isabela sentia que havia um vínculo muito forte entre eles. Sua mãe, que a acompanhou constantemente, após trocar de roupa pelas que ficava em casa, apareceu na porta do quarto e falou bruscamente.

 

 _ Que mãe é esta? Tem uma filha, mas não se preocupa em dar-lhe um nome. Temos que batizá-la logo, não quero ter uma pagã em casa.

 

 _ Eu não sei, que nome você acha que devo dar a ela, Adriano?

 

 _ Paula. Eu gosto de Paula. E você mãe, você gosta?

 

 _ Legal! Gostei sim. Paulinha, é, você tem cara de Paulinha.

 

 Os dois riram e ficaram ali algum tempo, namorando a pequena.

 

 Paula cresceu, muito agarrada a todos, a avó mimava, sempre que podia estava lhe fazendo carinhos, a senhora desmanchava-se em sorrisos, amava aquela menina. De vez em quando nascia uma lágrima que ela disfarçava, era um pequeno remorso por ter proposto à filha a morte daquela que, agora, era a razão de sua vida.

 

 Adriano se tornou o grande protetor, estava sempre atento ao que a irmã fazia, aonde ia, várias vezes evitou que ela se machucasse, saindo dos acidentes mais dolorido, enquanto que a pequena sorria.

 

 Isabela retornou logo a trabalhar, recebeu com alegria a confirmação da proposta de sociedade. Sua patroa necessitava afastar-se da loja, o marido havia conseguido uma boa chance de trabalho no exterior e ela seguiria com ele, com a sociedade estaria mais tranqüila, a loja ficaria nas mãos de quem realmente fazia ela funcionar e a sua sócia necessitava que ela desse um bom lucro, havia mais boca para sustentar. E isto aconteceu, Isabela sabia vender e administrar, conduzia os outros vendedores com uma tranquilidade e segurança que era como se tivesse feito isto em toda a sua vida.

 

 Passou o tempo, Paula com a idade de dez anos, interessava-se muito por leitura de livros espíritas. Lia-os para toda a família à noite. Sempre, antes de deitarem, ela lia umas duas folhas. Isto começou quando estava aprendendo a ler. No esforço de todos para lhe ensinar, eles passaram a ouvi-la lendo, e assim continuou sua mãe trouxe um livro de Francisco Cândido Xavier para casa, ela sentiu-se atraída pela capa, como se já o conhecesse. Na tentativa de incentivá-la a ler, todos se acostumaram a ouvi-la, e agora, quando acabava um livro, a própria avó anotava, no lembrete de compras da geladeira, em letras grandes, a necessidade da compra de outro livro.

 

 Graças às leituras, esta família rezava unida, tinham uma nova visão da vida, reconheciam as suas fraquezas e aceitavam os fatos com resignação. A avó se tornou suave, evitava pensar no marido para não prejudicá-lo. Adriano, como o único homem da família, acreditava ser sua responsabilidade a manutenção da união dela. Isabela, apesar de viver recebendo propostas de casamento, sentia que a sua felicidade era cuidar dos filhos.

 

 E assim seguiram suas vidas até que Adriano começou a namorar. Paula sentiu seu coração apertar no peito, quando soube correu para seu quarto e chorou. Não entendia porque se sentia assim, devia estar alegre com a felicidade do seu querido irmão, mas tinha um sentimento de perda que a machucava. Evitava falar ou ouvir sobre a namorada do irmão, às vezes criava situações para que ele não fosse a um encontro. Adriano começou a perceber a atitude de sua irmã e se entristeceu, sentiu-se dividido entre o amor que tinha a ela e ao que tinha pela namorada. Resolveu trazer sua futura esposa, Berta, para apresentá-la à família, quem sabe se ao aproximá-la de sua irmã, elas se tornassem amigas.

 

 Dia e hora marcado, almoço de domingo, Paula acordou com febre, sua mãe não entendia porque, ela estava bem no dia anterior, não apresentava sintomas de gripe. Adriano não teve outro jeito, desmarcou a vinda de sua namorada, passou para o próximo domingo. Paula melhorou repentinamente, ficou alegre, e tentou criar um compromisso de passeio para o seguinte fim-de-semana. seu irmão percebendo o comportamento dela aceitou. Resolveram fazer um piquenique junto a uma cachoeira à uma hora de distância da cidade, mas ele teria que resolver outros assuntos antes, portanto a família deveria ir no carro da mãe na frente, ele tão logo estivesse livre iria ao encontro delas, prometia não se demorar.

 No sábado, ao encontrar-se com Berta falou:

 

 _ Minha querida, vamos fazer assim, amanhã passo pela sua casa, pego você e vamos ao piquenique. Não falei e não vou falar para elas que você vai comigo, será uma surpresa.

 

 _ Olha! Eu tenho medo destas surpresas, acaba que nós e que somos surpreendidos.

 

 _ Não, vai dar tudo certo. Elas vão gostar de você, não há como não gostar, você é linda, amável e alegre. Eu sei que elas vão gostar.

 

 _ Seja o que Deus quiser. E a sua irmã melhorou da febre?

 

 _ Passou logo depois de eu ter desmarcado com você, o almoço.

 

 _ Viu! E você ainda quer fazer surpresa, não percebe que ela está com ciúmes. Sempre teve você só para ela, a protegendo, mimando.

 

 _ Eu sei, mas não pode continuar assim. Eu quero me casar contigo, gosto demais da minha irmã, mas não vou deixar ela atrapalhar nossa felicidade.

 

 _ Eu não quero ficar entre vocês. Não acredito em felicidade a custa da tristeza dos outros.

 

 _ Berta, sei que você é espírita Kardecista, sei que conhece melhor do que eu, estas coisas de reencarnação, sinto que há alguma coisa neste sentido entre eu e minha irmã, sinto que não devo afastar-me dela, há um laço muito forte nos unindo, mas também sinto a mesma coisa por você. Este sentimento de divisão está acabando comigo. Me ajuda! Conversa lá no centro com alguém! Pergunta o que está acontecendo!

 

 _ Vou tentar, mas as coisas não são assim, o espiritismo não usa bola de cristal. Vou conversar com o Mentor, ele é muito amigo meu e da minha família. Hoje mesmo eu vou falar com ele.

 

 Manhã de domingo. Paula acorda toda alegre, excitada com o passeio. Adriano já tinha saído. Rapidamente, preparam tudo, arrumam no carro e pegam a estrada.

 

 Adriano buzina na porta da casa de Berta, ela aparece, bonita como sempre, parecia que o sol estava dentro dela, seu rosto brilhava. Entra no carro beijando com um sorriso nos lábios.

 

 Adriano impaciente pergunta sobre o resultado da conversa com o Mentor e Berta procura acalmá-lo:

 

 _ Eu conversei durante umas duas horas com ele. Ele já me esperava e já sabia o que eu queria. Falou-me sobre a necessidade de não lembrarmos das vidas passadas, que estas iriam nos prejudicar nas decisões que tomamos agora. Confirmou que realmente existe laços muito fortes que unem a vida da sua irmã, a sua e a minha. Aconselhou-me a ser paciente, rezar muito, tratar a sua irmã como se fosse minha própria irmã. Não me deixar levar por qualquer provocação que ela me faça. Confiar em Deus que tudo se ajeitaria.

 

 _ Mas ele não disse que laço era este?

 

 _ Não, ele falou para usá-lo para unir-nos mais.

 

 _ Poxa! Esperava algo mais claro.

 

 _ A coisa não é assim, ele não vai querer nunca interferir com a nossa vida, com as nossas decisões com o nosso livre-arbítrio.

 

 _ Tá bom! Tá bom!

 

 Seguiram em silêncio, a alegria de poucos instantes foi substituída por uma apreensão.

 

 A cachoeira era linda, seu barulho era uma canção que enchia a alma de paz. O gramado era ótimo para deitar-se ao sol. As três representantes de gerações da família igualaram-se em comportamento. Todas eram crianças, vestidas em seus maiôs, entraram n’água fria, jogaram água uma na outra, deitaram entre as pedras deixando que a água as massageassem.

 

 Era dez e trinta horas da manhã, quando Adriano e Berta chegaram. Paula, ao ver que seu irmão não estava sozinho, ficou petrificada. Não sabia o que pensar. Adriano desceu do carro, passou o braço pelo ombro da namorada e dirigiu-se para elas, chegou apresentando-a. Isabela e sua mãe a receberam admiradas, trocando elogios e sorrisos. Paula ficou parada, encolhida, sentindo ao mesmo tempo simpatia e ciúmes. Queria fazer uma cena, chorar, inventar alguma coisa, mas a presença daquela pessoa tinha outro significado para ela, não conseguia entender o que era, mas gostava sem querer gostar. Berta aproximou-se dela, fazendo um sinal discreto para o namorado para que este não se aproximasse, buscou se apresentar com humildade, demonstrou sua intenção de ser uma amiga dela, dizendo:

 

 _ Adriano fala muito de você, e eu aprendi a admirá-la por meio dele. Anseio te conhecer já algum tempo e quero ser sua amiga.

 

 Paula não sabia o que falar, abaixou os olhos.

 

 Berta continuou:

 

 _ Seu irmão me contou que você lê livros espíritas, eu tenho todos os de Chico Xavier, frequento o Centro toda semana. Se você quiser, eu gostaria de levar você lá.

 

 Paula sentiu alegria, aquilo realmente a interessava. Já há algum tempo desejava, mas em casa ninguém falava sobre isto. Ouviam-na ler, rezavam com ela, mas não demonstravam qualquer outra intenção. Aquela era uma oportunidade que não podia perder. Então, de repente desapareceu seus constrangimentos, viu no rosto da namorada de seu irmão uma afinidade de ideal, alguém que poderia trazer-lhe muitas alegrias. Para admiração de todos abraçou Berta dando-lhe as boas-vindas e virando-se para o irmão falou:

 

 _ Você não vai ficar enrolando ela, quando vai ser o casório?

 

Todos riram e se entregaram à diversão do piquenique.

  

* * *

 

Capítulo 3